5 de abril de 2006

Não é ainda Zaratrusta o último profeta

A globalização não caracteriza o mundo de hoje. É apenas um dos seus atributos e tem um significado que vai mais longe do que as aparências no-lo fazem entrever.

O mundo de hoje não começou propriamente hoje. Começou a insinuar-se há muito tempo, minou os tempos modernos na mais completa clandestinidade e ganhou força suficiente para vir ao de cima e competir pelo ar que todos respiramos.

Nasceu com o estertor do romantismo. Como um necrófago, alimentou-se das suas vísceras em putrefacção.

Teve o seu profeta, Zaratrusta, que sentiu o cheiro do cadáver em decomposição. Os sinos repicavam sobre os vales e as igrejas enchiam-se de fiéis devotos. Ao novo das naves longos círios com os pavios permanentemente acesos. As capelas laterais paramentadas de panos negros. O canto monótono e soturno a arrastar-se para além do tempo. Era o deus morto que velavam. Deus morrera e a comunidade dos homens, irmanados numa grande orfandade, chorava a sua morte.

Zaratustra pregou o que vinha depois do homem. Porque o homem iria soçobrar com a morte de deus. O que viria após o homem está para além do bem e do mal, vai além da ordem inscrita e a sua liberdade é o fundamento de todos os valores.

O mundo de hoje, porém, não é ainda o mundo do para-além-do-homem. O mundo de hoje é o mundo da instauração do monismo: um só em três figurações.




A primeira figuração do monismo é o monoteísmo. O monoteísmo é a crença na unicidade do divino. Teve a sua primeira aparição no Egipto, no reinado de Akhenathon. Teria sido sugerido por este a Moisés que atraiu o povo judeu à aliança com o deus único em troca da liberdade e da terra prometida. Que nunca lhe viria a ser entregue, porque o deus único, por natureza ciumento, não condescendia com as fraquezas do povo eleito sempre propenso à infidelidade com os numerosos deuses e ídolos de Canaã. Parece continuar a não condescender, mas isso é história que retomaremos. Mais tarde, o monoteísmo apoderou-se do império romano de uma forma que o destruiu, criando o mundo moderno, nascido das cinzas da medievalidade cristã, e propagou-se ao novo mundo. Agora renova-se um pouco por todo o lado na sua forma islâmica e refinadamente terrorista.

A segunda figuração do monismo foi o materialismo dialéctico. Seria este o reverso ateísta da religião judaico-cristã, caracterizado pela unicidade (do mundo material), pela promessa de uma terra futura (a sociedade sem classes), por uma luta contra as forças do mal (a luta de classes), por uma igreja militante (o partido) e um clero ponta de lança (a nomenclatura). Foi igualmente uma religião de livros (como a Tora, a Bíblia e o Alcorão) e profetas. Se o primeiro monismo recebeu por missão redimir a humanidade do pecado e da culpa individuais, o monismo ateísta com a sua preocupação social visaria redimir a humanidade do pecado e da culpa colectiva, a exploração do homem pelo homem, a exploração dos povos colonizados, a exploração desenfreada dos recursos e das riquezas naturais.

A terceira figuração do monismo é a ideologia progressista, a crença da redenção da humanidade através da ciência, da tecnologia e do mercado, capazes de promoverem um crescimento acelerado de bem-estar à humanidade prodigalizando-a generosamente com os bens e serviços de que ela carece para ser feliz. Quando se fala em globalização referimo-nos geralmente a um aspecto do progressismo que é a facilidade, generalização e baixo custo dos fluxos de bens, pessoas e ideias permitidos pelos actuais meios de computação e de comunicação entre grandes distâncias.

Três figurações de uma mesma ideia, a de que está escrito no céu a verdade da salvação: “in hoc signo vinces”. Três figurações do terror, três cavaleiros do mesmo apocalipse, três caixas de Pandora: anátemas, inquisições, caça às bruxas, fogueiras, progroms, goulags, hospitais psiquiátricos, polícias políticas, guerras quentes e frias, pobreza aviltante, fome, doenças pandémicas, esbanjamento dos recursos naturais, catástrofes nucleares, buraco de ozono, aquecimento dos oceanos, alcaedas, bombistas suicidas.

A globalização não caracteriza o mundo de hoje, amplia-o: a feira das vaidades é, agora, global. E os horrores que nos prodigaliza também.

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