1 de janeiro de 2015

Aonde leva o rio da vida?

Eu achava que era menino: pensava como um menino, sentia como um menino, corria atrás do bem estar e dos gozos imediatos, procurava chamar a atenção dos outros, acertava o comportamento pelo código da boa conduta, dentro da lei e dos usos, e de uma maneira geral nutria o sentimento de segurança que confere a cada um o pertencer a uma família, a uma cidade, a uma sociedade. Para completar esta premeditada e comprometida meninice, este jogo sujo de parecer um bom menino, acreditei, como me diziam, que até parecia um homem e, para satisfazer as expectativas universais, fiz-me um homem, creiam que me sentia ser um homem, com deveres e responsabilidades, jugo indispensável à quem quer permanecer menino apesar das aparências. Menino adulto, menino adulterado, mas sempre menino.

Quis a roda que preside às existências, sortear-me com o privilégio de um estado de saúde positivamente estável, e um vigor físico que ainda não cedeu aos caprichos da gravidade e da idade. As doenças conhecidas vêm de um passado remoto, alinhadas pelos genes com as gerações que me antecederam, e controlam-se a poder de comprimidos numa fuga em ziguezague como a do recruta no campo de tiro.

Eu achava que era um menino por dentro e por fora, nas aparições a mim e nas aparições aos outros.

Enquanto me estreava na meninice, sofistiquei na aprendizagem dos números e na agilidade das contas. Sou de uma geração que aprendeu com orgulho, e de cor, as tabuadas. E, a partir de ai, que se exercitou na práctica do cálculo mental. Era giro e até tinha montes de utilidade. As aplicações iam desde o controlo da colecção dos cromos das raças humanas até à gestão dos centavos com que os comprávamos. Não nos deixávamos enganar nos trocos e tínhamos sentido de poupança. Sabíamos o tempo que faltava para galgar cada degrau do crescimento e fazíamos rezas para que este passasse azinha, tempo era o que não faltava.

Havia os velhos, claro! Eles tinham o aspecto engelhado de quem se tinha cansado de acumular tanto conhecimento e tanta experiência. Chamávamos-lhes os avós, pessoas engraçadas que só elas sabiam contar estórias. Já eram crescidos e por isso tinham deixado de crescer. Iam ficar velhos para todo o sempre. É claro que nunca deixavam de trabalhar, naqueles tempos não havia reformas e trabalhar era tão natural para o comum dos mortais, como tomar banho todos os dias era para os ricos. Os velhos trabalhavam até poder. E garanto que podiam muito. Mesmo curvados e agarrados a um pau.

Continuo a achar-me menino apesar de um ou outro detalhe. O problema é que o diabo não está nos detalhes, o diabo está nos números.

E de que maneira! 

Quando era muito menino ia para a terra nas férias grandes. A terra distava a um dia de viagem por comboio da grande cidade e chegava-se lá cheio de foligem e empanturrado de uvas que se apanhavam quando a composição parava, para apanhar a lenha de alimentar a máquina, ou para apagar os fogos que esta espalhava por toda a parte. À chegada, a estação estava apinhada de gente: Era a família, um punhado de tios, mais de duas mãos cheias de primos e atrás de todos, claro, os avós.

Era gente engraçada, os avós.

Nasceram ambos no tempo do Senhor D. Luis. Ele pequenino, reservado, hirto, um rosto embigodado que era um espelho de autoridade. A pele tinha o tom da sépia como o das fotografias antigas. Olhava para nós com a compaixão que merecem os refugiados vindos da grande cidade: para eles, nós éramos todos amarelentos, enfezados, passa fomes, que íamos ali a apanhar ares, a comes e bebes e o sentido de toda aquela canseira era voltarmos rosados e bem nutridos devido, seguramente, à pureza do ar das serras, das águas nascidas das raízes dos pinheiros e dos alimentos que vêm da terra. Ela, alta, enxuta, rosto feliz e maroto. Fazia queijos a preceito e contava estórias do arco da velha. Eu gostava mesmo deles é sentia que era retribuído da mesma forma.

Hoje, que estou para aqui a achar-me menino, confronto-me com a crueldade dos números. É que já há muito ultrapassei a idade que eles tinham quando os conheci. 

Sem netos a quem contar estórias, sinto-me um menino fora do prazo. Sou velho, mas por calendário.

Por isso, conto estórias ao vento que passa...

      

4 Comentários:

At 05/01/15, 18:42, Blogger Justine comentou...

Não, contas estórias a quem te souber ouvir! E há para aí tantos meninos sem avô...

 
At 12/01/15, 15:56, Blogger Era uma vez um Girassol comentou...

Um contador de histórias...
Gostei muito...Vim voando ...do "Voando por Aí" da Teresa Durães...
E encontrei um espaço com textos muito bonitos, sentidos, baseados em experiência de vida....
Vou voltar para ler mais....
Um abraço
(afastada dos blogues há muito....)

 
At 23/01/15, 12:22, Blogger Rui Fernandes comentou...

http://tremontelo.blogs.sapo.pt/

 
At 03/02/15, 12:10, Blogger Teresa Durães comentou...

Também tenho a mania que sou menina apesar dos meu meninos já serem jovens adultos. E vem um médico diz que tenho isto ou aquilo, mas eu sou menina e não tenho nada dessas coisas (pelo sim, pelo não, tomo os comprimidos muito bem, até para não aparecerem dores de espécie alguma).

Os meus avós eram iguais e também demorava um dia a chegar à quinta onde ia ter liberdade (e ganhar cor e comer bem). Já não há quinta, nem avós, nem comer bem.

Netos ainda não chegaram, os meus meninos ainda são meninos mesmo que jovem adultos e eu sou uma menina mãe de dois meninos.

Quem não se enganam são as cadelas que pelo meu odor sabem perfeitamente que idade tenho.

 

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